Um profissional de psicologia
passa mais de 4 mil horas em uma universidade para receber uma formação de
bacharel, estudando um conjunto de disciplinas que vão embasar a sua prática
profissional: psicologia social, psicologia do desenvolvimento, psicologia da
personalidade, psicologia clínica, matrizes do pensamento psicológico, etc. Mas
alguns temas são relegados à periferia do conhecimento e da formação, e a
religião é um deles.
Mas não dá pra
culpar a faculdade por isto: são muitos campos de conhecimento que precisamos
para compreender o humano, e eles passam por diferentes espaços e momentos da
vida do sujeito: sexualidade, socialidade, afetividade, dentre outros campos,
tomam grande parte de nosso tempo de formação.
Mas também
temos um problema estrutural do pensamento psicológico: algumas matrizes de
pensamento minimizam a importância do tema por conta de suas tradições
filosóficas – algumas destas materialistas, outras declaradamente ateístas, e
acabam por cair na militância política e não se debruçando academicamente sobre
o tema.
Não é minha
intenção neste texto discorrer sobre teses filosóficas sobre a existência ou
não de Deus, nem incorrer em qualquer juízo de valor sobre a religião (se esta
é boa ou ruim para o ser humano), mas sim mostrar o quão despreparados somos
para lidar com esta temática.
Uma coisa que
preciso deixar bem claro antes de prosseguir: a psicologia não deve ser
utilizada como instrumento proselitista de nenhuma religião! Não é papel do psicólogo
fazer apologia de doutrina ou dogma A ou B. Mas uma coisa é bastante importante
– é preciso saber lidar com a demanda
religiosa quando esta é trazida pelo cliente.
Mas como fazer
isso? Se a única coisa que se ouve na faculdade é que “psicologia e religião
não se misturam”? (e não devem se misturar mesmo!). Já supervisionei muitos
profissionais de psicologia que, quando o cliente trazia uma demanda
relacionada à sua vivência religiosa, eles cortavam o cliente e diziam que não
iriam trabalhar com aquilo! Também já vi muito cliente procurando por psicólogo
“evangélico” ou “católico”, só porque ninguém antes havia dado conta de lidar
com carinho e deferência para com a sua fé.
Não se estuda
comportamento religioso nas faculdades do Brasil: em pouquíssimas delas, meia
dúzia, de centenas, talvez! E nós, que somos pesquisadores do tema neste país, ainda temos que nos deparar com os olhares preconceituosos de colegas que nem
ao menos sabem do que isso se trata e acham que queremos pregar alguma fé para
os nossos clientes. Quantas vezes, ao propor cursos de formações na área já
tive que escutar e ler gente falando que “ia denuncia ao CRP”... já vi até
mesmos conselheiro de tal autarquia desconhecendo do que se trata.
Não podemos mais tapar o Sol com a peneira!
Não dá mais para deixar a psicologia muda diante deste tema tão delicado que
engloba a subjetividade social e cultural do nosso povo. E também não podemos
deixar que colegas sejam enredados por propostas anticientíficas de psicologia
cristã, psicologia espírita, psicologia de exu, ou qualquer coisa do gênero
(isso não existe)!
Desde a
fundação da psicologia moderna, enquanto ciência experimental proposta por
Wundt em 1879, há estudos em psicologia da religião, e os mais diversos
autores, clássicos e contemporâneos, passando por Freud, James e Skinner, por
exemplo, já dedicaram parte de sua obra sobre o tema que, por mais que sejam
escassas no Brasil, há publicações importantes sobre.
Mas mesmo
diante de tanta dificuldade, foi um dos temas que mais me impressionou na
faculdade: primeiramente porque eu tinha minhas próprias demandas à época,
segundo porque vi que não era o único, terceiro porque percebi que havia muita
riqueza nos estudos e trabalhos deste tema que eram de relevância em várias
áreas da psicologia.
Então, certo dia, depois de formado, Deus
veio deitar no meu divã...
E ele tinha
diferentes formas, sendo que estas eram trazidas pelos relatos de um conjunto
de clientes que, muitos deles, sem saber, sofriam por causa de crenças,
pensamento e sentimentos que os atordoavam e tinham relações com seu contexto
cultural e religioso.
Alguns clientes
meus, ao deitar-se em meu divã, traziam seus relatos de abusos institucionais
sofridos nas igrejas, de relações conflituosas com autoridades eclesiásticas, crenças
disfuncionais relacionadas à religião, repressões de sexualidade vinculadas à
conceitos religiosos, desconhecimento de sua própria fé, dentre outros.
Deus vinha
cotidianamente me visitar em meu consultório, e ele vinha por meio da dor de
quem acreditava nele, invisível, e muitas vezes mudos diante da incompreensão
ou dificuldade afetiva de meus clientes.
Esse d(D)eus
tinha várias caras: vinha por meio de Jesus, Jeová, Allah, dos Caboclos,
Espíritos ou Orixás, e às vezes, vinha até mesmo em formato de energias
cósmicas. Para mim não importava sua face, nem como ele se manifestava, só me
importava que ele se manifestava na fé daqueles que me buscavam como ponte para
uma melhor compreensão de suas dificuldades, angústias e problemas.
Mas como lidar
com esse Deus de várias faces? Acolher, receber, conter, questionar,
confrontar, perguntar, validar... vários são os momentos em que estive diante
deste Deus, que às vezes, era até mesmo por mim desconhecido, outras vezes,
parecia um parceiro de futebol, e em alguns momentos, era a mais pura expressão
das projeções de meus clientes.
Receber Deus em
um consultório não é uma tarefa fácil: (E)ele é a coisa que tem de mais sagrado
na experiência de meus clientes, e precisa ser tratado com tal respeito... Por
isso precisa ser estudado, ouvido, indagado, mas acima de tudo, respeitado!
E se você, é
psicólogo ou estudante de psicologia, está lendo estas linhas, saiba que a
minha intenção não é a de teorizar sobre a existência ou não de um ser
superior, de um manda-chuvas do universo, mas a de situar a importância da fé e
espiritualidade na vida do seu cliente que, indubitavelmente um dia lhe trará
demandas desta ordem.
É preciso
aprender um pouco mais sobre como este humano com que nós trabalhamos lida com
o(s) seu(s) d(D)eus(es), deste que aprendeu ou construiu, experimentou ou
projetou, enfim, não importa, o que importante é que consigamos fazer de nosso
consultório um templo para a dor e o sofrimento daqueles que muitas vezes, nem
neste d(D)eus, tão querido, conseguem suas respostas, afinal de contas,
parafraseando Jesus de Nazaré, existem questões, dúvidas e perguntas que não se
resolvem no nível da fé, mas sim no nível da abstração do pensamento humano: “à
psicologia o que é da psicologia, a d(D)eus o que é d(D)eus”.
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Autor
Murillo
Rodrigues dos Santos (CRP 09/9447)
1 Comentários
Brilhante, necessário, cotidiano e genial.
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